Autor: Vitória Xavier

Há quase um século, o Brasil era cenário de um acontecimento que destruiu a vida de mais de 60 mil pessoas. Uma terrível história que se desenrola na cidade de Barbacena/MG, mais especificamente, no Hospital Colônia e que violou, por cinco décadas, inúmeros direitos humanos, defendidos e promulgados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a qual foi criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948.

Esse acontecimento que marcou, definitivamente, a vida de inúmeros brasileiros e acarretou em diversas atrocidades, é nomeado pela autora, Daniela Arbex, jornalista brasileira que se dedica à defesa dos direitos humanos, como “Holocausto brasileiro”, a qual faz comparacões do Hospital Colônia com o nazismo. Destaca-se, ainda, que Arbex é autora do best-seller “Holocausto brasileiro” publicado em 2013 e responsável pelo documentário de mesmo título, lançado na netflix em 2016.

Em suma, essa matéria visa se aprofundar nas amarguras do Hospital Colônia, se aproximando da história, dos ocorridos e das vítimas. Bem como, de todos aqueles direitos humanos que foram criados, segundo a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), para “reconhecer e proteger a dignidade de todos os seres humanos”, mas que muitas das vezes são feridos e incapazes de proteger essa dignidade.

Barbacena é uma cidade mineira mais conhecida como Cidade dos Loucos, nomeação recebida devido a grande quantidade de manicômios que ali já existiram, dentre os quais se destaca o Hospital Colônia. Este, corresponde a um hospital psiquiátrico extremamente desprovido de serviços, funcionários e recursos necessários para a permanência dos pacientes. Em que, ao ser adquirido pelo governo de Minas Gerais, se torna cada vez mais decadente e impróprio para moradia, o que não o impede de ser cenário principal do horror que permaneceu por cinco décadas no território mineiro.

Ademais, tem-se que a maioria dos pacientes mantidos no Colônia, muitas das vezes, nem “loucos” eram. Mas sim correspondiam a pessoas melancólicas, andarilhos, mães solteiras e diversos outros tipos de indivíduos, considerados “normais”. E mesmo assim, foram trancados por grades, sem roupa, sem comida, sem água e até mesmo, sem o mínimo para a sua sobrevivência, por inúmeros anos. Acrescenta-se que os pacientes chegavam de trens, os quais paravam na estação Bias Fortes, uma estação que existia nos fundos do próprio hospital.

Contexto histórico do Hospital Colônia

O Hospital Colônia, antes de assim ser nomeado, era utilizado como spa de luxo para o internamento de doentes pertencentes a classe elitista, ou seja, era um tipo de sanatório particular. O spa de luxo deixa de existir quando o governo de MG, no ano de 1903, toma posse da propriedade dando origem ao Hospital Colônia, o primeiro manicômio local.

Tendo em vista que já na Idade Média existiam diversos estigmas, destaca-se um a respeito do dever do indivíduo de ter função econômica, pois era o trabalho que o tornaria um ser moral. Sendo assim, aqueles que eram considerados inaptos ou até mesmo impuros, eram encaminhados a locais (que mais próximo a atualidade, viriam a ser os hospitais psiquiátricos) na tentativa de serem “consertados”.

Essas tradições, juntamente a noções higienistas de uma medicina precária e uma sociedade preconceituosa, segregou da sociedade, aqueles que eram considerados alcoólatras, prostitutas, inimigos políticos de uma elite local, homoafetivos, crianças indesejadas, pessoas com sífilis, epilépticos, andarilhos, moradores em situação de rua, mães solteiras, mulheres que não queriam se casar e até mesmo, aquelas que eram trocadas por amantes.

Dessa forma, um fato que chama a atenção dentro do Holocausto brasileiro, é a estimativa de que ao menos 70% dos atendidos do hospital não sofriam de nenhuma doença mental, apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública.

O Holocausto Brasileiro

A existência de uma Declaração dos Direitos Humanos não foi capaz de impedir que homens e mulheres, idosos e crianças fossem tratados como prisioneiros pelo Hospital Colônia de Barbacena. Esses indivíduos foram abandonados pelas suas famílias, pelo poder público, pelo sistema de saúde (organizações que deveriam, justamente, prover cuidados e tratamentos aqueles em maior situação de fragilidade) e ainda, pela sociedade em geral.

O “trem de loucos” foi uma expressão criada pelo autor Guimarães Rosa em “Primeiras Estórias” (1962), para se referir aos comboios que chegavam à estação Bias Fortes em Barbacena, os quais traziam vários indivíduos como animais. Estes passageiros passavam fome, sede e viam-se por dias, juntamente, as suas próprias evacuações. Portanto, já dentro desses comboios, milhares de pessoas já passavam a ter seus direitos extremamente violados. Assim, o spa que antes era de luxo, agora se tornava uma instituição de controle social, um lugar para abandonar os “indesejados da sociedade”.

Pátios enormes e fechados, com água de esgoto, urina, ratos, roupas esfareladas e eletrochoques como “punição”. Essa era a vida desses tidos como “loucos”, que insisto em dizer, muita das vezes, nem loucos eram. Cabe destacar que o Hospital Colônia não atuou sozinho, pois recebia o excedente de pacientes de várias outras instituições de mesmo porte.

Sendo assim, com o fechamento do Hospital Neuropsiquiátrico Infantil de Oliveira, dezenas de crianças foram transferidas para o Hospital Colônia. Crianças estas, que foram abandonadas por seus familiares ora por possuírem algum tipo de deficiência física ou mental, ora por simplesmente “darem trabalho de mais”. Logo, o Hospital Colônia era tido, literalmente, como um “depósito de lixo humano”.

É de suma importância destacar Toninho, um rapaz que foi abandonado no Colônia aos doze anos pela própria família. O motivo? Um quadro de epilepsia! A história de Roberto não se distancia muito, pois esse nasceu com hidrocefalia (problema que provoca inchaço no crânio, mas que tem tratamento) e apesar dos traços bonitos, não atendia aos padrões sociais, sendo obrigado a experimentar a exclusão. Estes homens representam a dor sofrida por milhares de civis, histórias que, quase sempre, são invisíveis e até mesmo deixadas de lado.

Ao morrerem, os pacientes eram enrolados num lençol e carregados para o terreno existente ao lado do hospital, que pela enorme quantidade de cadáveres enterrados, acabou por se tornar um cemitério. Mas, atualmente se encontra desativado, uma porque não comportava mais corpos e outra porque as reclamações dos moradores só aumentavam, afinal, aquele lugar era responsável por alastrar um enorme mau odor pela cidade.

Prosseguindo, damos destaque para Geraldo Fialho, que ocupou cargo de relações públicas no Hospital Colônia. Fialho nega a venda de cadáveres a universidades, alegando que apenas entregava (sem custo algum) os cadáveres que eram rejeitados por seus familiares. Entretanto, Daniela Arbex, conseguiu reunir documentos que comprovam a venda de 1.800 corpos para dezessete faculdades de medicina do Brasil, entre 1969 e 1980.

Ademais, tem-se que na falta de compradores, os responsáveis pelo hospital chegavam a dissolver os corpos dos falecidos em ácido. Tal ato se concretizava na frente de outros pacientes, a fim de cultuar medo e soberania por todo o local. Aqui, torna-se importante destacar ainda o fato de que muitos pacientes foram sim levados por suas próprias famílias para o Colônia, mas outros, não faziam a menor ideia de como chegaram lá.

À vista disso, destacam-se filhos, irmãos e dentre outros parentes que, por anos, procuraram seus entes queridos, no entanto, mal sabiam que, muitas das vezes, o que restava era apenas seus corpos vitimizados. Os quais eram vendidos até mesmo sem sua permissão, Arbex registra em sua obra intitulada de “Holocausto brasileiro” que nenhum dos familiares das vítimas autorizou a comercialização dos corpos. Posto isto, temos que mesmo depois de mortos, estes indivíduos continuaram a ter seus próprios direitos dilacerados.

Cinco décadas de violação de direitos humanos

Inúmeros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos foram ignorados por três décadas. Tido que o holocausto brasileiro perdurou de 1930 à 1980 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi concebida apenas em 1948 (consoante as Nações Unidas). Dessa forma, cabe agora mencionar alguns dos próprios artigos propostos pela ONU, dentro da DUDH, acerca da preservação dos direitos humanos, que foram violados:

  • artigo 1 “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”;
  • artigo 2, parágrafo 1 “1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” e parágrafo 2 “Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania”;
  • artigo 3 “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”;
  • artigo 4 “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”;
  • artigo 5 “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”;
  • artigo 6 “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”;
  • artigo 7 “Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”;
  • artigo 8 “Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédios efetivos para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”;
  • artigo 9 “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”;
  • artigo 10 “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”.

Além de todos os direitos que lhes foram negados, os pacientes do Colônia ainda eram vítimas de estupro e torturas não só físicas, como também, psicológicas. Os artigos supracitados, são apenas alguns dos que foram violados. Pois, a DUDH contempla um total de trinta artigos em sua declaração e foram acentuados aqui, apenas um terço de sua totalidade. Mesmo que o holocausto brasileiro tenha infringido muitos outros, salienta-se que o papel dessa matéria, é fazer apenas uma breve exposição. E, destaca-se ainda, que tamanha crueldade durou por tantos anos, devido à existência de leis frágeis que simplesmente existem, mas atuam de maneira ineficaz. Não dando conta nem de preservar a dignidade do ser humano.

Junto a essa conjuntura, evidencia-se a alta capacidade de manipulação do governo de Barbacena, que manipulou por décadas a sociedade para que não desconfiasse de nada. Bem como, a presença de funcionários do hospital que mantinham seus “trabalhos” debaixo dos panos, perante não só a sociedade local, como também, a todos aqueles familiares das vítimas que almejavam tê-los novamente.

Assim, pode-se concluir que, o Colônia não existia para fins terapêuticos, mas políticos. Sendo possível analisar que a falta de poder é capaz de calar um indivíduo e ainda, infringir seus próprios direitos. Destaque para um comentário de Franco Basaglia, psiquiatra italiano, ao visitar o Hospital Colônia da cidade de Barbacena:

“Estive hoje em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como esta.”

Para concluir, um alerta de Daniela Arbex, “Ao ignorar nossa própria história, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos”. Em suma, essa matéria buscou trazer elementos importantes à compreensão deste acentuado acontecimento brasileiro, que mesmo sendo de longas datas, ainda é pouco conhecido e divulgado, principalmente, pelos próprios residentes do país.

REFERÊNCIAS

file:///C:/Users/Vit%C3%B3ria/Downloads/Holocausto_brasileiro_vida,_genoc%C3%ADdio_e_60_mil_mortes_no_maior_hosp%C3%ADcio_do_Brasil%20(2).pdf

file:///C:/Users/Vit%C3%B3ria/Downloads/De-loucura-a-politica_o-holocausto-brasileiro-e-a-luta-antimanicomial-pela-reforma-psiquiatrica-no-Brasil.pdf.

Godoy, Ana B. de. Arquivos de Barbacena, a Cidade dos Loucos: o manicômio como lugar de aprisionamento e apagamento de sujeitos e suas memórias. Revista Investigações Vol. 27, nº 2, 2014.

https://brasil.un.org/pt-br/91601-declara%C3%A7%C3%A3o-universal-dos-direitos-humanOs

https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.

https://www.scielo.br/j/sdeb/a/v9vGDrqDPfQt3KJkS5Kjndc/#

Peron, Paula R. A trágica história do Hospital Psiquiátrico Colônia. Psic. Rev. São Paulo, volume 22, n.2, 261-267, 2013.

Rosa, João G. Primeiras Estórias. Editora Nova Fronteira, 1962.


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